As
armas do futuro, por Walter Benjamin
Por Racismo Ambiental (RA),
28/07/2013 12:18 (in Folha/Uol)
Em
texto de 1925, inédito em português, Walter Benjamin fala de armas químicas,
como o gás lacrimogêneo, e prevê sua vulgarização. Editado pelo jornal
“Vossische Zeitung” sem sua assinatura, o artigo foi catalogado pelo filósofo entre
suas obras publicadas e sairá no Brasil no livro “O Capitalismo como Religião”,
da Boitempo. Tradução: Nélio Schneider.
As designações
anteriores(1) serão tão populares na próxima guerra quanto “trincheira”,
“submarino”, “Berta Gorda”(2) e “tanque” foram na passada. Para os
vocábulos químicos difíceis de pronunciar serão adotadas em poucos dias cômodas
abreviações. E essas expressões, promovidas em poucas horas a uma atualidade
jamais imaginada, superarão em popularidade o vocabulário de todos os
relatórios dos fronts escritos de
1914 a 1918.
Elas dizem respeito a cada
pessoa diretamente. A guerra vindoura terá um front espectral. Um front que
será deslocado fantasmagoricamente ora para esta, ora para aquela metrópole,
para suas ruas, diante da porta de cada uma de suas casas. Ademais, essa
guerra, a guerra do gás que vem dos ares, representará um risco literalmente
“de tirar o fôlego”, em que esse termo assumirá um sentido até agora
desconhecido. Porque sua peculiaridade estratégica mais incisiva reside nisto:
ser a forma mais pura e radical de guerra ofensiva. Não há defesa eficiente
contra os ataques com gás pelo ar. Até mesmo as medidas privadas de proteção,
as máscaras antigás, falham na maioria dos casos.
Por conseguinte, o ritmo do
conflito bélico vindouro será ditado pela tentativa não só de defender-se mas
também de suplantar os terrores provocados pelo inimigo por terrores dez vezes
maiores. Em consequência, é irrelevante quando teóricos mais bem intencionados
acenam com a perspectiva “humana” do gás lacrimogêneo, e até procuram criar
simpatia pela guerra com o gás, comparando-a com a guerra aérea com materiais
explosivos.
Outros já têm a visão mais
aguçada, quando colocam de antemão e em primeiro plano, como motivo para o
ataque com gás (cuja importância crescente já foi ensinada pela guerra
passada), o seguinte: a finalidade última das ações da frota aérea deve ser
destruir a vontade de resistência inimiga. Alguns poucos “raids” [ataques]
devem infundir na população dos centros inimigos um terror inconsciente tal que
malogre qualquer apelo à organização da resistência. O terror deve ser algo
similar à psicose.
Uma imagem que nada tem das
utopias de Wells e Júlio Verne: nas ruas de Berlim, espalha-se sob o belo e
radiante céu primaveril um cheiro parecido com o das violetas. Isso dura alguns
minutos. Logo em seguida, o ar se tornará sufocante. Quem não lograr escapar da
sua esfera de ação nos minutos seguintes não conseguirá mais reconhecer nada,
perderá momentaneamente a visão.
E, se ainda não for bem-sucedido
na fuga ou se nenhum transporte o recolher, morrerá sufocado. Tudo isso poderá
suceder um dia sem que se veja no céu qualquer aeronave nem se perceba o ronco
de uma hélice. O céu poderá estar claro e o sol brilhando, mas invisível e
inaudível, a uma altitude de 5.000 metros, paira um esquadrão aéreo respingando
cloroacetofenona, gás lacrimogêneo, o “mais humano” dos novos recursos que,
como se sabe, já teve certa importância nos ataques com gás da última guerra.
Não há meio confiável que
permita perceber a presença dos esquadrões entre cinco e seis quilômetros acima
da superfície da Terra. Ao menos publicamente não se conhece nenhum. É que a
“ouverture” abafada que há anos está sendo executada nos laboratórios químicos
e técnicos só chega aos ouvidos do público em forma de dissonâncias isoladas.
Esporadicamente fica-se sabendo
de coisas, como da invenção de um receptor acústico muito sensível, capaz de
registrar o ronco de hélices a grandes distâncias. E alguns meses depois
ouve-se falar da invenção de uma aeronave silenciosa.
Alguns fatos que o
correspondente de guerra norte-americano William G. Shepherd divulga no
“Liberty” sobre a “aplicabilidade” do parque aeronáutico francês na guerra são
ilustrativos.
A França possui hoje pelo menos
2.500 aeronaves no serviço ativo à paz; há mais na reserva. A tonelagem total
das forças aéreas francesas, dependendo da altitude de voo, comporta entre 600
e 3.000 toneladas. Shepherd põe Londres como alvo. O centro de Londres, sede de
todos os institutos vitais do Império Britânico, cobre quatro milhas quadradas
inglesas. Para se tornar inabitável por vários meses, essa área exige a
aplicação de 120 toneladas de sulfeto de dicloroetila, o gás mostarda.
Considerando que sobre esse
território podem voar ao mesmo tempo -dentro da mesma camada atmosférica,
naturalmente- no máximo 250 aviadores, cada um deles carregando pelo menos 250
quilos, e que esse esquadrão despeje uma tonelada por minuto, o coração do
império mundial britânico -sempre de acordo com a abordagem de Shepherd- terá
parado de bater após dois minutos.
INÉRCIA
O aspecto problemático dessas
exposições é que a fantasia humana se recusa a acompanhá-las, e justamente a
monstruosidade do destino ameaçador se torna um pretexto para a inércia mental.
Sua tentativa de convencimento sempre resulta em que uma guerra dessas ou é de
todo “impossível” ou seria de extrema brevidade. Na verdade, essa guerra só
terminaria num breve instante se a respectiva base dos esquadrões aeronáuticos
fosse conhecida dos combatentes.
Não é esse o caso. Pois essa
base de modo algum precisa situar-se em terra. Em algum lugar do oceano, as
aeronaves podem alçar voo de navios porta-aviões, que mudam constantemente sua
localização sobre as águas.
Com o que se parecem os gases
venenosos, cuja aplicação pressupõe a suspensão de todos os movimentos humanos?
Conhecemos 17 até agora, dos quais o gás mostarda e a lewisita são os mais
importantes.
As máscaras antigases não
oferecem proteção contra eles. O gás mostarda corrói a carne e, quando não
acarreta diretamente a morte, produz queimaduras cuja cura demanda três meses.
Esse gás permanece virulento durante meses em objetos que entraram em contato
com ele. Nas regiões que alguma vez foram alvo de um ataque com gás mostarda,
meses depois, cada pisada no solo, cada maçaneta de porta e cada faca de pão
ainda podem provocar a morte.
O gás mostarda, a exemplo de
muitos outros gases venenosos, torna todos os víveres incomestíveis e envenena
a água. Os estrategistas imaginam assim a utilização desse recurso: certos
distritos taticamente importantes devem ser cercados com barreiras de gás
mostarda ou então de difenilamina cloroarsina.
Dentro dessas barreiras tudo
perece e nada consegue passar por elas. Desse modo, casas, cidades, campos
podem ser preparados de tal forma que, durante meses, nenhuma vida animal ou
vegetal é capaz de medrar neles. Nem é preciso dizer que, no caso da guerra com
gás, cai por terra a diferenciação entre população civil e população combatente
e, desse modo, um dos fundamentos mais sólidos do direito dos povos.
A lewisita é um veneno à base de
arsênico que penetra imediatamente no sangue, matando de forma irremediável e
súbita tudo o que atinge. Durante meses todas as áreas atingidas por ataques
com esse gás ficam empestadas de cadáveres. Naturalmente não existe proteção
contra ele em tais regiões: porões subterrâneos, que protegem quando muito de
bombas explosivas, trazem a morte certa no caso de ataques com gás, porque o
gás, pesado, tende para os lugares mais baixos.
Ora, como se sabe, o Comitê
Central da Liga das Nações instituiu uma Comissão para o Estudo da Guerra
Química e Bacteriológica. Dessa comissão participaram autoridades
internacionais. Seu relatório não foi tratado com a devida consideração. A
grande política ainda prioriza problemas de armamentismo e desarmamento cuja
relevância se desfaz no ar frente aos fatos referentes aos preparativos para a
guerra química.
A persistência com que, na
execução do Tratado de Versalhes pela Alemanha, foram questionados ridículos
requisitos militares não tem só um aspecto desagradável mas sobretudo algo de
sumamente perigoso. Porque ela desvia a atenção pública do único problema atual
do militarismo internacional.
-
WALTER
BENJAMIN (1892-1940), filósofo e crítico literário alemão,
autor de “A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica”.
NÉLIO
SCHNEIDER, 52, tradutor do alemão especialista na área de ciências
humanas, assina a versão em português de novo livro de ensaios de Walter
Benjamin, a sair pela Boitempo, “O Capitalismo como Religião”.
Notas
1. Cloroacetofenona,
difenilamina cloroarsina e sulfeto de dicloroetila são os nomes dos compostos
químicos usados como armas; eles integravam o subtítulo original do artigo de
Benjamin, daí a menção às “designações anteriores”.
2. “Dicke Berta”, em alemão, era o apelido de um morteiro de 42 centímetros, desenvolvido pela firma alemã Krupp para a Primeira Guerra Mundial. (N.T.)
2. “Dicke Berta”, em alemão, era o apelido de um morteiro de 42 centímetros, desenvolvido pela firma alemã Krupp para a Primeira Guerra Mundial. (N.T.)
Enviada para Combate Racismo
Ambiental por José Carlos.
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