segunda-feira, 18 de abril de 2011

Paul Ricoeur - O sentido do tempo

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Obra-prima de Paul Ricoeur investiga relação entre experiência humana e narrativa

Resenha de 'Tempo e narrativa', de Paul Ricoeur

Tempo e narrativa, de Paul Ricoeur.
Tradução de Claudia Berliner.
1.208 páginas. R$ 156 (os três volumes)




Por Júlio Cesar Machado de Paula*

Vez por outra, o mercado editorial brasileiro nos dá razões de celebração, resgatando do limbo obras que, inexplicavelmente, lá permaneciam com o frustrante rótulo de “esgotadas”. É o caso da trilogia “Tempo e narrativa”, de Paul Ricoeur, que volta às livrarias em nova e bem cuidada edição da Martins Fontes.

Por mais ampla que seja a acepção em que o tomemos, o termo filósofo jamais será suficiente para recobrir o trabalho acadêmico de Paul Ricoeur, pensador múltiplo que abarcou em sua extensa produção, além da própria filosofia, textos de historiografia, teologia, psicanálise e teoria literária. Tendo iniciado sua formação no começo da década de 1930, manteve-se atento aos principais sistemas filosóficos europeus do século XX, sabendo colher de cada um deles, mesmo dos que divergiam de sua trajetória, elementos que lhe parecessem válidos para suas próprias análises. Tal procedimento, assumidamente assistemático, foi, por um lado, alvo de críticas por parte dos que o tinham como um pensador excessivamente eclético e, por vezes, incoerente; e, por outro, motivo de elogios por parte daqueles que, como o próprio Ricoeur, não se vexavam de buscar no trabalho do outro (mesmo daquele de quem se divergia) aquilo que o nosso pensamento isoladamente não seria capaz de atingir.

Um exemplo dessa busca pelo pensamento do outro pode ser dado pela experiência de Ricoeur na academia norte-americana, especialmente por seu contato com a filosofia analítica anglo-saxônica e sua inclinação por estudar não apenas a natureza ontológica de cada categoria, mas seus mecanismos de funcionamento e de interação com o mundo. “A metáfora viva”, de 1975, primeiro fruto desse contato, determinou uma mudança significativa na trajetória de Ricoeur, assinalada, dali em diante, pela convicção de que a linguagem não deve ser vista como um mero dispositivo simbólico que torna apreensível a experiência humana, mas como um dos principais elementos constitutivos dessa mesma experiência. E é o próprio Ricoeur quem nos alerta: concebidas em conjunto, “A metáfora viva” e “Tempo e narrativa” são obras gêmeas.

Em “Réflexion Faite”, sua autobiografia intelectual, Ricoeur evidencia a tese que orientou a escrita de “Tempo e narrativa”: a existência de uma “conexão significativa” entre a função narrativa e a experiência humana do tempo, já que “o tempo se torna tempo humano na medida em que está articulado de maneira narrativa”, e, em compensação, “a narrativa é significativa na medida em que desenha as características da experiência temporal.” De caráter circular, tal hipótese é posta à prova, no primeiro momento, por um inusitado diálogo entre o Livro XI das “Confissões” de Santo Agostinho e a “Poética” de Aristóteles. O primeiro acaba concluindo pela negação ontológica do tempo, já que ele não seria mais do que um trânsito entre um futuro que ainda não é e um passado que já não é mais.

Diante do impasse, Ricoeur vislumbra na dinamicidade do conceito aristotélico de mythôs, entendido como a criação de uma estrutura de sentido, e cerne, para ele, do processo de tessitura da narrativa, a possibilidade não de definir o tempo, mas de conferir-lhe justamente uma estrutura de sentido que o torne apreensível. É por meio da tessitura narrativa, portanto, que nossa experiência com o tempo se torna significativa.

Na sequência, Ricoeur se entrega à investigação desse processo na narrativa histórica, ainda no primeiro volume, e na narrativa de ficção, objeto do segundo volume. Livre das obrigações acadêmicas, o romance constituiria, para Ricoeur, “o grande laboratório no qual o homem experimenta relações possíveis com o tempo.” Em busca de tais relações, Ricoeur se dispõe a analisar, no segundo volume, a estruturação temporal de três romances, por ele classificados como fábulas do tempo: “Em busca do tempo perdido”, de Proust, “A montanha mágica”, de Thomas Mann, e “Mrs. Dalloway”, de Virginia Woolf.

No terceiro volume da trilogia, Ricoeur prossegue em seu método de entrecruzar vozes filosóficas, desta vez, trazendo à cena o pensamento fenomenológico de Kant, Heidegger e Husserl. A intenção (bem sucedida) de Ricoeur é demonstrar como as diferentes abordagens fenomenológicas do tempo não só não resolvem o intervalo que separa o tempo cosmológico do tempo da percepção, como acabam por ampliá-lo. Não resta alternativa, pois, senão insistir no preenchimento desse intervalo por meio da incessante elaboração narrativa.

O objetivo de Ricoeur, contudo, não é analisar as abordagens fenomenológicas em si, mas propor, a partir da paradoxal concepção husserliana de duração, que engloba, a um só tempo, mecanismos de permanência (retenção da memória) e de mutação (protensão da memória), o conceito de identidade narrativa.

Para Ricoeur, a noção corrente de identidade é problemática, pois negligencia o fato de que, na origem, eram dois os termos latinos capazes de expressar tal ideia, idem e ipse, cujos valores semânticos, ainda que próximos, não se confundiam. No primeiro caso, o sentido que se destaca é o da manutenção pura e simples dos caracteres ao longo do tempo, resultando em um princípio denominado por Ricoeur de “mesmidade”. Do segundo termo, ipse, decorreria, paradoxalmente, um modelo fluido de identidade, constituído pela linguagem e regido por um princípio de “ipseidade”. Tal princípio se caracterizaria por mecanismos capazes de estabelecer compromissos com o tempo por meio da palavra, como a promessa e a profecia. Ocorre que tais mecanismos, sujeitos às intermitências da palavra, não asseguram ao sujeito a constituição de uma identidade em moldes essencialistas. Do mesmo modo, portanto, como a dinamicidade do mythôs nos leva a pensar não em uma estrutura definitiva da narrativa, mas em um processo constante de estruturação, o que a identidade narrativa salienta não é uma identidade pré-definida e estática, mas um processo constante e inconclusivo de identificação.

E é a partir justamente da identidade narrativa que Ricoeur elabora, quase transformando a trilogia em um quarteto, “O si-mesmo como um outro”, livro que aguarda, em língua portuguesa, tradução e edição à altura de sua importância. Resta torcer para que o mercado editorial nos dê mais este motivo de celebração.

* Júlio Cesar Machado de Paula é professor adjunto da Universidade Federal do Amazonas

Extraído de O Globo - Prosa & Verso
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Um comentário:

LUIZ HENRIQUE MACHADO DE PAULA disse...

Excelente resenha. Clara, objetiva e demonstrando ser o autor conhecedor da obra.