quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Ideias não envelhecem

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Ideias não envelhecem

Em 2001 a NovaE publicava a entrevista com o filósofo finlandês Pekka Himanen que apresenta no Brasil tese sobre a ética de trabalho e a vida dos hackers, que tanto a midia de massa combateu nestes primórdios e hoje, mesmo a contragosto, se curva perante a realidade deste ativismo e criatividade digital. (Nas fotos, Pekka, em 2001 e hoje)

Por Sheila Grecco


Transformar a monotonia da sexta-feira em um ensolarado domingo, democratizar a informação, romper a jaula de ferro da disciplina e burocracia, criar arte e beleza através do computador. Esses são os valores de um verdadeiro hacker, expressos pelo filósofo finlandês Pekka Himanen, no polêmico livro "The Hacker Ethic. And The Spirit of The Information Age", recentemente publicado pela Random House (232 págs., US$ 25).

A obra de Himanen, professor das Universidades de Helsinque, Finlândia, e Califórnia, Berkeley (EUA), vai na contramão do senso comum sobre revolução digital. "O termo hacker vem sendo empregado incorretamente. Na origem, nos anos 60, e é isso o que enfatizo, significava apenas uma pessoa para quem programar era uma paixão. O hacker não é jamais um criminoso de computador", definiu Himanen, em entrevista ao Valor, concedida de Helsinque, cidade onde mora e leciona nos "verões".

Violar segredos de empresas, roubar números de cartão de crédito são ações de crackers; os hackers lutam pela liberdade de expressão e tiveram vital atuação na crise de Kosovo

A tese, que já foi tachada de extremamente original a puro romantismo por críticos americanos, está dando o que falar também na Europa, onde foi lançada nesta semana. Contra fatos, Himanen contrapõe argumentos filosóficos, sociológicos e históricos para sustentar a formação de uma ética dos hackers via "comunismo a cabo". Para ele, a criação do Linux, em 1991, é um dos melhores exemplos dos valores desses programadores, pois revela paixão pelo trabalho e extrema capacidade de abertura. O programa desenvolvido por Linus Torvalds, que inclusive prefacia o livro de Himanen, é um sistema gratuito, com código-fonte aberto e vários aplicativos compatíveis, que podem ser igualmente obtidos pela internet.

Himanen cita também o padrão MP3 - fruto de ação de hackers - que conquistou os ouvidos dos internautas do mundo inteiro e fez do Napster, que permite a troca de arquivos musicais na rede, um sucesso tão grande que chegou a forçar a biliardária indústria fonográfica a buscar um acordo para acabar com o que considerava pirataria. "Trata-se de extraordinários avanços na área de softwares abertos e que representaram movimentos reais contra a quebra do monopólio da Microsoft. Por isso, é preciso sublinhar a idéia de 'software aberto' ou 'plataforma aberta'. Sua ênfase não é o dinheiro, mas sim na liberdade e na abertura. Como diz um pensador mais radical, Richard Stallman, devemos ver o processo de abertura no sentido de 'liberdade de expressão', e não como o mero ato de dar uma 'cerveja grátis'", lembra o filósofo.

Outros exemplos da "socialização do conhecimento" são o modo como driblam a censura em diversos países, atuando mesmo de forma efetiva na crise de Kosovo, em 1999, e a formação de invasores do bem - os hackers que seriam pagos para entrar no sistema de empresas e testar suas vulnerabilidades. "Eles funcionariam como psicólogos para saber o que se passa na cabeça dos 'crackers', esses sim, os criminosos", aponta.

Na última semana, o FBI anunciou dados oficiais do maior ataque hacker criminoso da história: só nos Estados Unidos, mais de 1 milhão de números de cartões de crédito foram violados por grupos que exploraram as vulnerabilidades do sistema Microsoft, em 2000. Dados secretos de grandes empresas foram burlados. Essas seriam ações dignas dos Robin Hoods do espaço ou estariam mais para um Robinson Crusoé, símbolo da literatura burguesa? "Eles não passam de crackers. Ser um hacker é ter um título de honra, significa ter uma ética própria, na qual o dinheiro é mera conseqüência e não a causa do trabalho", argumenta.

Para um hacker, disciplina representa autopunição. Dinheiro é para ser gasto, trabalho deve ser prazer e não obrigação. No novo capitalismo, a estrutura burocrática que racionaliza o uso do tempo seria totalmente dispensável. O filósofo vai contrapondo, um a um, os estatutos da ética dos hackers à protestante, à essência do próprio capitalismo preconizado por Max Weber (1864-1920).

"Hackers crêem que a revolução digital deve ser traduzida em um tempo lúdico para a humanidade; a sexta-feira deve virar um domingo"

Himanen, autor de diversos livros de filosofia da tecnologia e uma espécie de guru de CEOs, acadêmicos e artistas, se define como um "humilde filósofo". Embora admita já ter feito suas ações como hacker e passar dias inteiros navegando pela rede, explica que suas paixões hoje são escrever e lecionar. Ele já está preparando um novo livro, em parceria com o sociólogo Manuel Castells, sobre revolução digital e, é claro, os hackers. Tema preferido, porque, "se os hackers são aqueles que não têm medo do prazer, então, nos sonhos de todos, há um desejo secreto de ser apenas um bom hacker". Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista:

  • Em seu livro, os hackers aparecem de maneira bastante idealizada. Contrariando o sendo comum, ciberpunks, piratas virtuais, criadores de vírus, crackers e hackers não seriam, então, "farinha do mesmo saco"?

Pekka Himanen: Não, embora essas definições se mesclem no imaginário das pessoas comuns, e sejam utilizadas, muitas vezes, indistintamente pela imprensa. O que procuro ressaltar no livro é a origem do termo: hackers são somente programadores apaixonados que trocam suas descobertas livremente com os seus parceiros. Nos anos 80, começou um movimento de deturpação desse sentido, associando-se hackers a criminosos de computador. Mas o seu sentido permanece através da ação de hackers como Steve Wozniak (criador do primeiro computador pessoal, o PC) ou Linus Torvalds (inventor da plataforma Linux). Quanto mais se tornar conhecido que foi através da ação e paixão individual dos hackers (e jamais das corporações) que a base tecnológica do que é a internet hoje foi disseminada, mais os hackers voltarão a ganhar a credibilidade na opinião pública.

  • Autodisciplina e automodelação vinham juntas na ética do trabalho proposta por Max Weber. Segundo a sua tese, os hackers preferem o lema "esta é a minha vida", em vez do "time is money". Como se constrói e se propaga, na prática, essa nova filosofia virtual?

Himanen: A ética protestante incluiu a idéia do "time is money". Governada por essa ética, muito de nossa economia se tornou mais e mais veloz. Nosso tempo de lazer está diminuindo e se tornando apenas obrigação, um processo que poderia ser chamado de "Fridayzation of Sunday". Pessoas estão constantemente correndo de um compromisso a outro, tentando sobreviver dentro dos prazos, do "deadline", expressão que é significativa do nível de emergência e exaustão a que se chegou. Da perspectiva de um hacker, esse é um resultado estranho do progresso tecnológico. O aspecto mais interessante da ética dos hackers é se opor frontalmente à velha ética protestante. Os hackers crêem que a revolução digital deve ser traduzida também em um tempo lúdico para a humanidade. Trata-se de reverter o processo, transformar a sexta-feira no domingo ("The Sundayization of Friday"). Uma relação mais livre é também necessária na economia informal cuja base principal é a criatividade: você precisa permitir a formação de estilos individuais se deseja que se criem coisas interessantes. Na ética protestante, a idéia do dinheiro era um valor em si mesmo. Isso não significa que os hackers sejam ingênuos ou anticapitalistas. Na nova economia, a idéia de propriedade se estendeu para a noção de informação em uma escala jamais vista anteriormente. A própria história do hardware dos computadores é um reflexo disso. A Apple perdeu para o IBM PC sobretudo porque esta apresentava uma arquitetura mais flexível. Os padrões da internet venceram porque eles foram desenvolvidos contra as regras oficiais de padronização. Os protocolos da rede bateram os do Gopher devido a rumores de que o Gopher poderia se tornar, digamos, propriedade privada. Há muitos outros casos semelhantes, cuja lição permanece: se você quer vencer na competição, a melhor estratégia é a abertura e não rigidez. Mas, claro, como argumento em meu livro, as principais razões para tais abertura são éticas, e não comerciais.

Para um hacker, disciplina representa autopunição, dinheiro é para ser gasto, trabalho deve ser puro prazer e não uma obrigação

  • Muitos argumentam que essa flexibilidade e a proeminência do agora geram angústia, incerteza e corrosão de caráter, certa incapacidade de se relacionar com algo/alguém além do computador. O sr. concorda?

Himanen: Essas são posições alarmistas e, em certo sentido, saudosistas. Devido à ligação fundamental entre criatividade e economia da informação, a relação do hacker com o tempo está aos poucos se espalhando para profissionais de outros ramos da informação. E a tendência é aumentar cada vez mais. É um erro achar que o hacker está isolado do mundo e das pessoas, relacionando-se apenas com o computador. Hackers de computador têm enfatizado ultimamente que ser um hacker não significa necessariamente ter de trabalhar com computadores. Há algum tempo, conheci uma pessoa que era um hacker de tratores, outros tipos surgirão em breve.

  • O sr. escreve que a crise de Kosovo em 1999 foi um exemplo modular da ação democrática dos hackers, que espalharam pela rede notícias que se opunham à versão oficial dos fatos. Dessa forma, os hackers seriam politizados?

Himanen: No livro, enfatizo que a liberdade de expressão tem sido um valor vital dos hackers. Não se pode dizer que eles foram sempre passivos e que somente na crise de Kosovo deixaram claro o seu potencial contra o militarismo. Na China, além de ser importante ferramenta para os negócios, a internet tem sido muito usada para contornar a censura. Em Kosovo, os hackers ajudaram os dissidentes a usar a internet com o objetivo de espalhar informação e enviar reportagens para fora de seu país. O governo de Slobodan Milosevic praticamente fechou toda a mídia de oposição, incluindo a mais proeminente, a Rádio B-92. Entretanto, os hackers ajudaram a estação de rádio a continuar a sua transmissão pela internet. Rádios estrangeiras pegavam os sinais da rede e iam retransmitindo-os dentro da própria Iugoslávia, o que tornou os censores não só ridículos, como também ineficientes. Essa é ação dos hackers em um de seus melhores momentos.

  • 78% dos cerca de 130 milhões de usuários da Web no mundo (dodos de 2001) se limitam aos EUA e à Europa. Com um acesso tão restrito e sabendo que milhões de pessoas no mundo são privadas ainda de direitos básicos, como a educação, não seria um enorme exagero considerar a internet uma mídia de massa?

Himanen: De fato, é precoce dizer que a internet já é uma mídia de massa porque, segundo as últimas estatísticas, apenas 5% da população mundial tem acesso à rede. Há mais pessoas morando no Vale do Silício do que conectadas à rede na África e no Oriente Médio somados. De forma que a revolução digital é desigual e ainda há muito a ser feito. Alguns grupos de hackers como o Internet Society e o Net Day tentam lutar contra a exclusão digital, ensinando princípios de conexão e navegação, o que é importante simbolicamente. Mas isso deve ser um esforço que precisa partir dos governos e que deve considerar um investimento maciço em educação. Os governos precisam entender que em nossa economia global e digital o acesso das nações à internet e à alfabetização - também digital - é fator preponderante para o sucesso. Devemos muito o que ocorre aqui (Finlândia) a uma ação efetiva do Estado.

  • Como a revolução nas tecnologias de comunicação está mudando o próprio conceito de informação na sociedade?

Himanen: No passado, associávamos informação a conhecimento, mas o que em grande parte se encontra na rede hoje não é conhecimento, mas um complexo de trocas de emoção e experiência. Sem dúvida, pode-se ter acesso mais rápido e fácil a livros, enciclopédias, dicionários, dados, estatísticas. Mas, por outro lado, a internet deixou claro que a informação não é tudo. O que se requer, agora, é a habilidade para criar um filtro pessoal, selecionando questões e problemas, e se posicionando frente a eles. E é essa a filosofia educativa dos hackers: fazer com que as pessoas aprendam a aprender.

  • O que um historiador no ano de 2020 vai escrever quando analisar os hackers do nosso tempo? Quem vai prevalecer no tempo: os hackers do bem ou os do mal?

Himanen: Eu me atrevo a dizer que em 2020 a internet já será uma mídia universal, entretanto, isso requer trabalho consciente e a formação de novos heróis. Via de regra, tendemos a celebrar os feitos de CEOs e outros que basicamente só se movem pautados pelos interesses de suas companhias. Mas a rede não pode existir sem a ação individual e, por vezes, anônima, dos bons hackers, nomes como os de programadores, verdadeiros "heróis da generosidade", porque dividiram seus conhecimentos com os colegas - como fizeram Vinton Cerf e Tim Berners-Lee, os pais da internet na rede, entre outros. Os nomes de criminosos e dos piratas virtuais vão simplesmente se perder na poeira da história.

Entrevista publicada na NovaE originalmente em 2001, de autoria e com autorização de Sheila Grecco, jornalista, então editora-assistente de Opinião do jornal Valor Econômico.

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